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O Poeta, assim o chama o Sonhador
nunca morou realmente nesta cidade
Também não é absolutamente verdade
que tenha pertencido ao que as pessoas chamam sociedade
com o ar mais patético possível
ou ao que quer que seja de parecido
com um clube literário
Alguém, talvez mais do que uma pessoa
disse que não o podemos situar nesta cidade
nem neste país
que há qualquer coisa de universal em homens assim
O próprio Sonhador, que o chama respeitosamente e afectuosamente
o Poeta
sempre viu nele essa universalidade
e penso que foi isso que o fascinou mais do que tudo
O Poeta, diz o Sonhador, teve de se construir a si próprio
essa é que é a verdade
não foi só uma questão de descobrir personagens
e mestres e afinidades
foi muito mais do que isso
tratou-se de uma construção
de uma filosofia onde pudesse viver
Como conseguiu coexistir em si próprio
essas realidades incompatíveis, as dos outros e a sua
é que ainda não consegui perceber
O Sonhador chama-lhe personalidade múltipla
É certo que o sonhador, o meu querido amigo
vê coisas que desconheço totalmente
vê a realidade das coisas e das pessoas
ligada a imensas outras realidades
a imensos outros percursos
consegue relacionar tudo isso
O meu olhar é muito mais absoluto
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Habituamo-nos aos nossos autores, aos nossos compositores
aos nossos realizadores, aos nossos amigos
aos nossos hábitos
Andamos de certo modo condicionados a determinados padrões
e nem damos por isso
Convencemo-nos, por qualquer razão
que somos pessoas abertas e tolerantes
que olhamos realmente e vemos
que estamos atentos e ouvimos
mas só vemos e ouvimos
aquilo para que estamos previamente preparados
para ver e ouvir
De vez em quando há uns abanões nessa calmaria
mas não passa disso
Fala-se então de equilíbrio
que tudo volta ao equilíbrio desejável
como uma lei da Física
Nada me arrepia mais do que essa palavra
adaptada às pessoas
e à vida e aos relacionamentos
Precisamos de situações inesperadas
que nos acordem realmente
Para escapar à tentação de hoje pegar nos meus autores
mas lá acabarei por cair
peguei num livro, Escrever, de Marguerite Duras
que encontrei num Inverno de 94...
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No fundo, guardamos em nós
essa capacidade de repetição de cenas
que já representámos de uma outra forma
num outro cenário
Mesmo que nos dêem instruções
para alterar isto ou aquilo
acabamos sempre por cair na nossa peça inicial
É como se fôssemos concebidos
de uma determinada matéria
que não aceita alterações exteriores
porque tem em si um papel para representar
Acredito profundamente nisso
As teorias da supremacia do meio
na construção de uma pessoa
nunca me impressionaram
Mesmo que mudem os cenários
a criatura já sabe o seu papel
Não se pode ver livre da sua própria composição
já está tudo definido
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Que novas personagens nos surgem agora
que as não conseguimos achar fascinantes?
Muito vistosas e muito ruidosas, sim
Mas que pensamentos e sentimentos próprios de uma personagem
na sua individualidade e filosofia próprias
encontramos nestas novas personagens?
Sacrifica-se tudo ao grupo, foi isso que aconteceu
O grupo determina ditatorialmente a nova personagem
as novas regras do jogo, as novas atitudes
os novos discursos, as novas percepções
Sacrificou-se a pessoa
Onde é que podem surgir personagens fascinantes
na ausência de pessoas, por assim dizer?
Autómatos e marionetas, e tudo na roda-viva
dos pensamentos e sentimentos por encomenda
Estou perfeitamente convencida que o Filósofo viu isso tudo muito antes
Antecipou esta época, estas novas personagens
e a ausência de pensamentos e sentimentos próprios
Imagino o pesadelo que o Filósofo terá tido
quando visualizou por assim dizer esse cenário
Posso até imaginar a tentativa de situar esse cenário
na lógica intrínseca da sua teoria geral
sobre a evolução da espécie humana